
Toda criança e adolescente tem direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Essas são as diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil. Mas infelizmente, não foi o que aconteceu com Edna Freeman. A pernambucana de 35 anos, mora há 20 em San Francisco, na California, e hoje é um exemplo para inúmeras pessoas pelo seu trabalho comunitário e engajamento. Mas quando era jovem sofreu com a violência – inclusive sexual – e com o preconceito.
“Já me sinto com mais coragem de contar o que aconteceu na minha vida. Por muitos anos, a pessoa que é abusada, sente que a culpa é dela. Se sente suja. E quando a gente amadurece e entende o que aconteceu, dá vontade de contar, de se libertar dessa dor”, contou Edna durante entrevista ao repórter investigativo Thathyanno Desa, no programa Lado a Lado com a Verdade.

Ela contou que o pesadelo começou aos 9 anos, quando foi molestada por um tio. E os casos continuaram em outros lugares. “Meus peitos começaram a crescer e um tio pediu para ver meus peitos. Eu, toda tímida, disse que não, e ele dizia que era normal. Quis chupar meu peito. Foi a primeira vez que aconteceu com uma pessoa adulta. Depois disso, eu sempre fiquei muito esquisita perto dele. E nunca contei para ninguém, porque era um tio adorado por todo mundo. Depois eu fui ser coroinha da Igreja Católica e tinha um padre que por algumas vezes tentava me empurrar no canto da parede e tentar fazer coisas comigo. E depois disso eu deixei de ser coroinha. Pessoas assim tentam se aproveitar de pessoas inferiores. A comunidade não se preocupa com crianças que são pobres. E era um padre adorado por todo mundo. O povo falava de mim porque eu gostava de me vestir com roupa curta quando eu era adolescente. A comunidade taxa uma menina com nomes pela maneira como ela se veste. Eu tinha 12 anos e me chamavam de puta pela roupa que eu usava. E eu nunca fazia nada com ninguém. Eu me sentia sem valor e não falava pra ninguém quando faziam isso comigo. Meu pai não era presente. Traía minha mãe. E aos 13 anos, fui estuprada por um menino dois anos mais velhos que eu, em uma floresta perto da minha casa. Levou dois amigos e eles assistiram o que estava acontecendo, comigo chorando. Foi horrível. Era meu namorado, mas era só pra dizer que era. Pra andar de mãos dadas e beijar. E quando não queria mais namorar comigo, disse que queria me mostrar uma coisa. Ele estava com os amigos juntos. Me levou no mato e me obrigou a tirar a roupa, fazer sexo oral. Eu cheguei a me cagar. Eu era chamada de puta. E me fizeram me sentir culpada por ser estuprada. Por ter me cagado. A família dele deveria ter ensinado a ser um homem de respeito a uma mulher, mas a própria comunidade deveria ter me protegido. Uma vez fui me confessar com outro padre e ele me levou para o motel. Me colocou na van da igreja e me levou para o motel. Outro padre. Um padre mais novo. Tinha uns 30 e poucos anos. E para me calar, me deu dinheiro. Lá em Recife, mães de muitas meninas não queriam que elas fossem amigas minhas, porque diziam que eu era puta. E eu não era. Somente fui uma criança que foi estuprada”, desabafa Edna.
Ela conheceu o acolhimento em outro momento. Fui para a Igreja Evangélica, onde ninguém sabia a minha historia. E foram maravilhosos comigo. Falaram que eu era especial para Deus e para eles. E foi a primeira vez que eu ouvi isso”, conta.
Mas iludida por um homem, viu sua vida virar um verdadeiro inferno. Foi assim que entrou no mundo da prostituição. “Mas tinha um cara da minha vizinhança, que era jogador de futebol, jogava no Náutico. Casado, com uma filha. Me seguia de moto e eu terminei caindo na rede dele. Dizia que queria ficar comigo. Tinha 24 anos, me levou pra praia, me deu bebida alcoólica. Eu nunca tinha ficado bêbada. E me levou para o motel e me obrigou a fazer coisas horríveis. Mas eu achava ele bonito, e na minha cabeça, eu pensava que tinha que agradar ele, e com isso os abusos ficaram piores. Ele me batia. Dizia que para fiar comigo, eu tinha que dar dinheiro para ele. Nisso, uma vizinha dele, que era amiga a minha mãe, a gente chamava ela de Janaina Pretinha. Ela falou ‘você tem como conseguir dinheiro’, e me levou para conhecer um rapaz que era responsável por organizar as coisas para os homens. Me deram comida, bebida e o homem me levou ao motel para fazer sexo com ele. A lágrima caía no meu olho, mas eu segurava a tristeza por ter aquele homem nojento em cima de mim. Ele me deu dinheiro, mas era mixaria perto do que eles ganharam. Eu pensava que era quase um favor, deu odiava. E do jeito que tratavam a gente, a mim e as outras meninas. Nos davam drogas, maconha, cocaína, pílulas. Então tem muita coisa em branco. Eram advogados, policias, policiais federais, vereadores. E eram meninas de menor. Tinha menina de 12 anos. E eu com 14. As pessoas viam eles nos dando bebida e não faziam nada. Eram monstros, mas ninguém ligava para nós. A comunidade faz ficar fácil para esses homens abusar da gente”, revela.
Edna lembrou o nome de alguns dos homens que pagavam. E de outras histórias horríveis. “Um era o Beto Moura, policial aposentado. Era um dos clientes desse cafetão que organizava tudo. Ele dava dinheiro para a gente e ganhava a comissão. Eles pegavam a gente nas casas e levavam para casas de pagode. Tinha um rapaz, o Itamar, que era parte desse pagodes, que os homens iam lá para pegar essas meninas novas. Esse período foi de um ano. Dos 14 aos 15 anos. Mas foi tanta coisa, que nem parecia um ano. Nos davam drogas. Me estupravam e me jogavam no meio da rua. E eu tinha que me virar para voltar para casa. Esse jogador do Náutico se chamava Paulo André, de Recife, e foi um dos piores. Me batia. Fez sexo comigo até eu me cagar e depois botou na minha boca e fazia eu comer a minha própria merda. O dinheiro que eu pegava desses homens, ia todo na mão do Paulo André. Ele pegava o meu dinheiro e dizia que ia comer outra puta com o dinheiro. Eu estava tão destruída mentalmente, que eu não sei porque eu deixava isso acontecer comigo. Pegava o meu dinheiro e me deixava no meio do nada. Eu tenho sorte de estar viva. Eu ia num clube de brega, e um policial dizia que eu não merecia estar sofrendo isso. Eu acho que ele colocou alguma droga na minha bebida. Me levou no carro, ele e um amigo, e os dois me estupraram. Os dois tentaram colocar o pinto ao mesmo tempo na minha vagina. Depois eu apaguei. Não lembro nem como chegar em casa”, relembra.
“Meu pai não era presente. Minha mãe dizia para não fazer, mas não era presente. Minha mãe, desde pequena também botava roupas provocantes em mim. Eu acho errado sexualizar a criança. Aos 15 anos, eu conheci o pai dos meus filhos. 27 anos mais velho. Muita gente vai dizer que me ajudou. Para mim, ajudar uma pessoa que está sendo abusada, não é pegar para mais sexo. Não usar para seu próprio benefício. Eu fui transformada pela sociedade como uma boneca de sexo. Eu nunca me vi com valor nenhum. Sofro com muitos traumas. Mas me sinto libertada. Porque contei a minha história”.
Hoje, Edna faz psicologia para ajudar outras pessoas que sofrem abusos. “Eu não tenho vergonha de contar minha historia. Porque ela fez quem eu sou hoje. E não me culpo mais. Esse homens destruíram a minha vida, e a sociedade também. Quem errou comigo foi quem me viu naquele bar, com aqueles homens nojentos e não fez nada. Meus pais. Meu tio, minha tia, minha vó. Me atacaram como puta, como cagona. Como faz uma menina sair da escola e o menino nela?. Eu não fui a primeira e não sou a última. Se fosse alguma menina rica, com certeza fariam algo. Adolescente não é adulto. Adolescente é criança”, desabafa.
Questionada qual o sentimento que tem hoje, Edna não titubeou. “É de querer ir lá, olhar para mim e dizer: ‘você é especial’. Porque ninguém nunca fez isso por mim. Eu não era igual as outras crianças. Eu não sinto pena de mim. Sou forte, sou guerreira. Nunca desisto. Quando eu lembro de mim nova, me dá vontade de chorar. Sinto pena dela. E gritar para o mundo: ‘quem é você para falar dela’. Aquela mentalidade que eu cresci, achando que eu precisava de um homem pra me resgatar também era errada. Quanto mais rápido procurar ajuda, mais rápido impede coisas piores de agradecer. Meu peito nascendo, com 9 anos, meu tio Nivaldo veio e pediu para ver meu peito e chutou meu peito. Eu contei e ninguém fez nada. Ainda tem aquela coisa de dar mais valor ao homem ou ao adulto. E ele deve ter feito com outras”.
Edna também fez um pedido aos pais. “Não force dar beijo em tio, sentar no colo. A criança tem que ter autoridade do próprio corpo. Se ela fala não, respeite. E escute ele. Vamos parar de fazer nossas crianças parecerem adultos. A criança não tem a capacidade de dizer sim ou não. O pedófilo vai com presente. Ensina seu filho a vai aceitar presente. É importante prestar atenção nesses presentinhos. Sofri bullying na vizinhança, na escola. Sofri bullying porque era pobre, me chamavam de puta. Quando vê que a menina é pobre, acha que não tem valor nenhum”, conta.
Nossa redação procurou o tio de Edna, Nivaldo Pereira dos Santos, e ele se mostrou bastante nervoso, tentando intimidar nosso repórter Thathyanno Desa, dizendo que iria processá-lo.
Confira a entrevista completa:
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