
Uso desenfreado de IA e telas pode emburrecer a sociedade, alerta cientista, que reivindica regulação internacional e expande projeto para tratar doenças neurológicas.
Por Paloma de Sá | GNEWSUSA
O uso desenfreado de telas e de ferramentas de inteligência artificial pode estar reduzindo a capacidade intelectual do ser humano e transformando a sociedade em uma geração de “zumbis digitais”. O alerta vem do médico e neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, professor e pesquisador reconhecido mundialmente, que há mais de três décadas estuda o funcionamento do cérebro humano. Em entrevista ao Podcast ONU News, Nicolelis reforçou que a inteligência é uma propriedade exclusiva dos organismos biológicos e advertiu para riscos globais que exigem regulamentação urgente.
“A ameaça não é das máquinas pensarem como humanos, mas dos humanos passarem a pensar como máquinas”
Segundo Nicolelis, não há fundamento científico para temer que computadores desenvolvam uma superinteligência capaz de superar o cérebro humano. O verdadeiro risco, afirma, está na adaptação da mente às lógicas digitais.
“O cérebro humano é um camaleão. Se o ambiente externo se transforma em um universo guiado por algoritmos e telas, ele vai se moldar a esse cenário. O problema é que, nesse processo, reduzimos nossa criatividade, nossa diversidade cognitiva e passamos a funcionar em um nível similar ao das máquinas digitais. É assim que corremos o risco de criar milhões de zumbis digitais”, alertou.
Explosão de artigos falsos e desinformação científica
Outro ponto destacado pelo cientista foi a proliferação de informações falsas, que agora atinge também o campo científico. Nicolelis relatou a dificuldade crescente de identificar artigos falsificados publicados em revistas acadêmicas, muitos deles criados com auxílio de ferramentas de IA.
“Estamos vendo uma indústria de produção de descobertas científicas falsas. Textos com citações inexistentes, experimentos que nunca ocorreram e dados fabricados circulam como se fossem reais. Isso mina a confiança nas instituições e coloca em risco a própria ciência”, explicou.
Regulamentação internacional: propriedade intelectual e exploração de trabalhadores
Nicolelis defende que a comunidade internacional estabeleça regras rígidas para o uso da IA. Entre as principais preocupações, ele cita:
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Uso indevido de obras intelectuais: livros e pesquisas de autores estão sendo utilizados para treinar algoritmos sem autorização ou pagamento. O próprio cientista descobriu que textos de sua autoria foram incorporados a sistemas de IA sem seu consentimento.
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Exploração de mão de obra vulnerável: milhões de pessoas em regiões pobres do mundo são contratadas para realizar o trabalho de curadoria e limpeza de dados, recebendo centavos por hora em condições precárias. Nicolelis comparou o cenário ao início da Revolução Industrial, quando crianças eram submetidas a trabalhos exaustivos em fábricas.
Da crítica à tecnologia à esperança na medicina
Apesar das advertências, Nicolelis continua à frente de pesquisas que unem cérebro e tecnologia em benefício da saúde. Pioneiro nas interfaces cérebro-máquina, o brasileiro ajudou a criar dispositivos que permitiram pacientes com lesões medulares voltarem a andar. Agora, seu foco está no desenvolvimento de terapias não invasivas para doenças neurológicas como Parkinson, epilepsia e Alzheimer.
Estima-se que 37 doenças neurológicas afetam 3,4 bilhões de pessoas no mundo, o equivalente a 43% da população global. O objetivo de Nicolelis é alcançar até 1 bilhão de pacientes com alternativas terapêuticas acessíveis e seguras.
O projeto “Treat One Billion”
Para viabilizar esse avanço, o cientista lançou a iniciativa “Treat One Billion”, que pretende criar uma rede global de centros de pesquisa e hospitais especializados no tratamento de distúrbios cerebrais. A ideia é estabelecer um “hospital virtual do cérebro”, capaz de oferecer terapias remotamente, diretamente nas casas dos pacientes, ampliando o alcance e reduzindo custos.
Entre o alerta e a missão
Enquanto critica o uso indiscriminado da inteligência artificial e o risco de uma sociedade digitalizada ao extremo, Nicolelis aposta na neurociência como caminho para melhorar a vida de milhões de pessoas.
“É minha missão de vida: transferir esse conhecimento para tratar pacientes ao redor do mundo. Mas, ao mesmo tempo, precisamos enfrentar com seriedade os efeitos nocivos da tecnologia. Caso contrário, em vez de evoluir, estaremos retrocedendo — e criando gerações de zumbis digitais”, concluiu.
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