Nos anos 1950, remover as amígdalas era tão frequente quanto uma consulta pediátrica. Décadas depois, evidências científicas provaram que a prática preventiva não tinha fundamento. A história revela como a medicina pode mudar radicalmente quando novos dados surgem
Por Paloma de Sá | GNEWSUSA
Na década de 1950, a amigdalectomia — cirurgia de remoção das amígdalas — tornou-se um dos procedimentos mais comuns nos Estados Unidos. Em 1959, cerca de 1,4 milhão de crianças passaram pela operação. Em muitas regiões, era quase um rito de passagem, tão comum quanto vacinas de rotina.
Mesmo com o crescimento populacional, o número caiu para aproximadamente 500 mil por ano nas últimas décadas.
A pergunta permanece: por que a prática médica mudou tão drasticamente?
As amígdalas vistas como “portais de infecção”
No início do século 20, doenças infecciosas eram medo constante entre famílias e médicos.
Sem antibióticos amplamente disponíveis, estruturas como as amígdalas — localizadas no fundo da garganta e parte essencial do sistema imunológico infantil — passaram a ser vistas como possíveis fontes de infecções repetidas.
A lógica predominante era simples:
se a criança adoecia com frequência, remover as amígdalas poderia evitar infecções futuras.
Com isso, a cirurgia virou prática preventiva, muitas vezes realizada mesmo quando não havia indicação clínica clara.
O estudo que mudou tudo: uma comparação que derrubou um hábito global
Na década de 1960, o pesquisador Dr. Jack Wennberg, da Universidade Dartmouth, concentrou-se em entender por que algumas regiões dos Estados Unidos realizavam muito mais cirurgias do que outras.
Seu estudo clássico comparou duas cidades vizinhas:
-
em uma, 60% das crianças passavam por amigdalectomia;
-
na outra, apenas 20%.
A diferença nas taxas de doenças infantis entre as cidades era nula.
A conclusão foi decisiva:
grande parte das cirurgias era feita sem necessidade médica, movida mais por tradição e crença do que por evidência.
O trabalho de Wennberg inaugurou a moderna discussão sobre variações injustificadas na prática médica.
1978: o NIH encerra a era da remoção preventiva
Após os estudos acumulados, em 1978, um painel de especialistas do National Institutes of Health (NIH) concluiu que:
-
não havia evidência robusta que justificasse a remoção preventiva das amígdalas;
-
a cirurgia envolvia riscos desnecessários quando não havia indicação precisa;
-
o procedimento deveria ser restrito a casos graves e refratários a tratamento clínico.
A posição do NIH marcou o início da queda global das amigdalectomias.
Do excesso à cautela: como a prática mudou
Com a consolidação da medicina baseada em evidências:
-
a cirurgia deixou de ser preventiva;
-
passou a ser recomendada apenas para quadros específicos, como infecções recorrentes severas, abscessos ou apneia obstrutiva do sono;
-
diretrizes clínicas modernas reforçam que as amígdalas têm papel importante no sistema imunológico, sobretudo na infância.
Hoje, especialistas afirmam que adiar a remoção, quando possível, pode beneficiar o desenvolvimento imunológico da criança.
Uma técnica milenar ainda necessária — quando indicada
Embora tenha caído em desuso como medida preventiva, a amigdalectomia tem uma longa história:
-
há registros de remoções na Índia por volta de 1000 a.C.;
-
relatos detalhados na Roma Antiga;
-
procedimentos brutais durante a Idade Média, sem anestesia;
-
aperfeiçoamentos no século 19 e 20 com advento da anestesia e da cirurgia moderna.
Atualmente, continua sendo uma intervenção importante em determinados contextos clínicos.
O legado das décadas de excesso cirúrgico
O declínio das amigdalectomias é um dos exemplos mais emblemáticos de como a medicina evolui quando submetida à análise científica rigorosa.
A história evidencia que:
-
práticas comuns podem ser abandonadas quando novas evidências surgem;
-
procedimentos “de rotina” precisam ser questionados;
-
a adoção de protocolos baseados em dados pode salvar vidas e evitar cirurgias desnecessárias.
Hoje, a decisão de remover as amígdalas é tomada com muito mais cautela — e baseada em critérios objetivos, não em tradição.
- Leia mais:

Faça um comentário