A trágica saga das crianças indígenas em internatos nos Estados Unidos

Durante mais de um século, dezenas de milhares de menores foram retirados de suas famílias e tribos e levados a instituições financiadas pelo governo para serem ‘civilizados’, um capítulo trágico da história americana que só agora começa a ser explorado a fundo.
Por Tatiane Martinelli | GNEWSUSA

Crianças Sioux ao chegar a um internato no Estado da Virgínia, em 1897

“A lembrança é nítida: um dia de setembro, um dia aterrorizante. Fui colocada em um ônibus verde-escuro, sem entender o que estava acontecendo ou aonde eu estava indo. Olhando pela janela, enxerguei minha mãe em lágrimas; aquela visão está profundamente gravada em minha mente e no meu coração.”

Assim inicia o relato de Ramona Klein, recordando o dia em que, há 70 anos, deixou seu lar em companhia da família e foi levada a um internato para crianças indígenas, no estado da Dakota do Norte.

Klein levou anos até conseguir falar sobre os abusos que sofreu e afirma que os quatro anos no internato marcaram o resto de sua vida. Hoje, ela compartilha sua história

Klein, integrante da tribo Turtle Mountain Band of Chippewa, tinha apenas 7 anos quando chegou à instituição em Fort Totten, em 1954. Nos quatro anos seguintes, enfrentou uma rotina marcada por castigos severos e abusos sexuais.

Sua história reflete a de centenas de milhares de crianças indígenas nos Estados Unidos, parte de um capítulo sombrio da história do país que lentamente começa a ser desvendado. Desde meados do século 19 até o início do século 20, o governo federal financiou centenas de internatos por todo o território.

Mais de 200 dessas instituições eram geridas por organizações religiosas, sendo ao menos 80 sob a supervisão da Igreja Católica. O intuito era claro: fazer com que os jovens indígenas abandonassem suas culturas, idiomas, religiões e identidades, enquanto se adaptavam aos costumes da sociedade branca americana.

A educação formal era deixada de lado; o foco recaía sobre o trabalho doméstico e agrícola, mesmo para os mais novos. Os internos eram vítimas de “abusos físicos, sexuais e emocionais desenfreados, além de doenças, desnutrição, superlotação e falta de assistência médica”, conforme um relatório do Departamento do Interior, que em 2021 iniciou uma investigação sobre esse tema.

“Muitas crianças nunca retornaram para casa”, afirmou o Departamento em um relatório de julho. Foram documentadas pelo menos 973 mortes de crianças indígenas nos internatos entre 1819 e 1969, com 74 locais de sepultura identificados em 65 internatos ao redor do país, embora muitos abusos e mortes não estejam registrados, tornando difícil apurar números exatos e causas dos falecimentos.

O Departamento reconhece que o número real de crianças que perderam a vida nos internatos é, na verdade, maior. Algumas morreram devido a doenças, outras em consequência dos maus-tratos.

A secretária do Interior, Deb Haaland — a primeira indígena a ocupar o cargo e com antepassados que passaram por internatos — viajou pelo país durante um ano ouvindo testemunhos de sobreviventes, muitos com idades entre 70 e 80 anos, destacando a urgência em registrar suas histórias. Aos 77 anos, Klein é uma dessas vozes. Em uma entrevista exclusiva à BBC News Brasil, compartilha o trauma imposto pelos anos no internato.

“Creio que meus pais não tiveram alternativa”, reflete Klein, uma das oito crianças de uma família enfrentando dificuldades em uma casa sem água encanada ou eletricidade em Belcourt, Dakota do Norte. “A escolha era entre deixar os filhos sofrerem de fome e frio ou levá-los ao internato. É inaceitável imaginar o que tiveram que enfrentar. O foco costuma ser nas crianças que vivenciaram isso, mas é crucial lembrar também do sofrimento dos nossos pais.”

As famílias frequentemente eram pressionadas por agentes federais ou religiosos a entregarem seus filhos. Quando se opunham, as crianças eram retiradas à força, muitas vezes amarradas e arrastadas de suas casas. Aqueles que resistiam enfrentavam cortes no fornecimento de alimentos e, em alguns casos, líderes indígenas eram presos por se negarem a obedecer.

Os internatos, apresentados como um meio de “civilizar” os jovens indígenas, também serviam para a desapropriação de terras por meio do deslocamento forçado dos filhos das tribos. Criadas em um período em que os indígenas eram expulsos de suas terras e confinados em reservas, essas instituições representam um dos muitos esforços do governo para extinguir a identidade indígena.

Nos últimos anos, diversas tribos iniciaram investigações próprias e localizaram sepulturas não identificadas nas áreas onde as instituições funcionavam. Sobreviventes de abusos processaram organizações religiosas e indivíduos envolvidos. O Departamento do Interior defende que o governo dos Estados Unidos deve reconhecer formalmente sua responsabilidade na adoção de políticas de assimilação forçada e oferecer um pedido de desculpas às vítimas e suas famílias.

Em junho, a Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos fez menção aos internatos e a política de assimilação forçada, reconhecendo a contribuição da Igreja para os traumas enfrentados pelas crianças indígenas. “Pedimos desculpas pela falha em cuidar e honrar aqueles que estiveram sob nossa proteção”, diz o documento, sem entrar em detalhes sobre os abusos.

Entretanto, algumas organizações, como o Congresso Nacional de Indígenas Americanos (NCAI), clamam por um pedido de desculpas formal do papa Francisco e a divulgação dos arquivos relacionados aos internatos. Em 2022, o papa pediu desculpas no Canadá pela atuação da Igreja na “destruição cultural e assimilação forçada“, mas não há indícios de que irá fazer o mesmo pelos casos nos Estados Unidos.

 

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